Quando diz aos amigos que está no terceiro ano do programa de trainee, Renata Assunção, de 26 anos, já sabe o que alguns vão responder: “Todo esse tempo só treinando?” Ela até se diverte com a brincadeira, mas explica em seguida que não, não está “só treinando”. “Eu tenho assumido responsabilidades cada vez maiores e ganhado mais autonomia não só para executar tarefas, mas também para saber a quem delegá-las”, afirma Renata, que atua na área de Marketing da Unilever. Entre outros projetos, ela foi um dos líderes do relançamento mundial do sabão em pó Omo, um dos carros chefes da empresa, que ganhou nova fórmula.
Com trainees e estagiários cada vez mais bem preparados e informados, algumas empresas passaram a transferir responsabilidades antes restritas a funcionários experientes a jovens talentos. Alguns especialistas em administração chamam esse processo de “empoderamento”, termo adaptado do inglês empowerment (que, para dizer a verdade, não soa tão bem em português). A ideia é dar à tão falada geração y oportunidade de assumir o protagonismo na tomada de decisões, em um ambiente corporativo com hierarquias mais fluidas e de estímulo à criatividade.
De acordo com Sofia Esteves, presidente do Grupo DMRH, consultoria de serviços de RH, os próprios trainees e estagiários têm exigido maior integração com a equipe e participação em projetos estratégicos. “As empresas aumentaram o grau de complexidade das atribuições dos jovens por entenderem que este é um desejo deles e também porque existe demanda real por pessoas mais preparadas.”
A valorização dos talentos ganhou força a partir da retomada do crescimento econômico do País, avalia o presidente executivo do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee), Luiz Gonzaga Bertelli. “A crescente geração de empregos esbarrou no problema da falta de mão de obra qualificada para atender aos complexos processos de produção e gestão dos dias atuais”, diz ele. “As empresas precisam investir com urgência na formação de novos talentos, sob pena de comprometerem seu futuro.”
A gerente de RH da Unilever Joana Rudiger afirma que os elementos citados por Sofia e Luiz Gonzaga contribuíram para a importância que os trainees ganharam na empresa na última década. Mas lembra que o trabalho dos jovens tem de ser acompanhado de perto. “Preciso de um gestor próximo do trainee para auxiliá-lo em tarefas do dia a dia, e de outro, mais sênior, para o coaching, mostrando a direção que esse jovem profissional deve seguir.”
Renata, a trainee que trabalha no Marketing do sabão Omo, teve gestores diferentes ao longo do programa. Houve situações em que, por falta de um gerente direto, ela precisou se reportar ao diretor da área. “Dado o rigor da seleção, é normal que haja uma grande expectativa e demanda em relação aos trainees. O frio na barriga existe, mas eu tenho de dar conta do recado”, diz. Formada em Comunicação Integrada pela PUC-Minas, a jovem cuidou do desenvolvimento do conceito, de estratégias de marketing e até do rótulo do “novo” Omo.
Assim como Renata, Lara Toledo, de 23, deixou sua cidade natal para ser trainee em São Paulo, na Johnson & Johnson. A publicitária carioca, graduada pela ESPM, trabalhou por um ano no marketing da Johnson’s Baby, linha de produtos para a higiene de bebês. “Participei de projetos de produtos que serão lançados daqui a dois anos e pesquisei tendências do mercado para pensar o portfólio da marca para os próximos cinco anos”, conta Lara.
Desde janeiro ela mora no Recife, onde fica até o fim do ano, parte da rotação prevista no programa de treinamento. Lara é uma das responsáveis pelo Departamento de Vendas da J&J na unidade de negócios da empresa para o Norte e o Nordeste. O escritório tem como meta dobrar as vendas da multinacional nas duas regiões até 2014. “Precisamos adaptar nossa comunicação aos consumidores locais, entender como funcionam os canais de distribuição e enfrentar os desafios de logística”, diz. “Recebi um projeto de bastante responsabilidade. Ao mesmo tempo em que a empresa confia em mim e me dá autonomia, tenho um gestor que acompanha o andamento das atividades.”
Segundo Sônia Marques, diretora de RH da J&J, a empresa precisa dar espaço para que os trainees mostrem talento, mas é fundamental definir os critérios pelos quais os jovens serão avaliados ao longo do programa. “Essa moçada tem cada vez mais iniciativa”, afirma Sônia. Por isso, a seleção dos trainees coloca os candidatos em situações nas quais eles precisam “se virar nos 30”. “Quero saber, na dinâmica, como eles se posicionam quando têm pouco ou nenhum poder. Conseguem influenciar seus grupos? É uma questão de exercer o controle emocional e a resiliência.”
O fortalecimento do trabalho em equipe é um dos reflexos dessa transferência de poder na hierarquia corporativa, diz o professor da faculdade de tecnologia Fiap e consultor empresarial Erik Guttmann. “Diversos setores da indústria estão horizontalizando suas estruturas hierárquicas e, por consequência, eliminando níveis intermediários de decisão. Assim, entra mais ‘oxigênio’ nas empresas e aumenta a velocidade da tomada de decisões.”
Por outro lado, alerta o consultor Rogério Sepa, da empresa de RH LHH/DBM, existem companhias que estão depositando fichas nos jovens talentos para cortar custos. “Tudo depende da área de atuação e dos propósitos da empresa. Ela pode assumir riscos no longo prazo pela queda da qualidade do serviço em razão da pouca experiência dos funcionários.”
Sentimento de dono. Na Ambev, conhecida por sua estrutura enxuta, desafiar os trainees e estagiários a entregar resultados “desde o primeiro dia” deixa os programas mais “interessantes”, afirma a gerente de Recrutamento e Seleção Isabela Garbers – ela mesma uma ex-trainee. “O que diferencia a carreira de um profissional na empresa não é a porta por onde ele entrou, mas a capacidade de entregar resultados.”
Trainee da Ambev em 2011, Bruno Addesso, de 25, diz que não havia um responsável por monitorar todos os seus passos nos dez meses de duração do programa. “A empresa confia nos trainees e acaba inflando na gente um sentimento de dono do negócio. Assim, nos desenvolvemos muito rápido”, afirma o bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP.
No primeiro semestre deste ano, Bruno trabalhou como gerente de Mercado e, em julho, assumiu uma gerência de Contas. Comanda um staff de 200 promotores e 6 supervisores de vendas da cervejaria na região de Campinas. “Nunca havia sido gestor de uma equipe. O convite para a área de Contas me fez perceber como a companhia confia no meu trabalho e pode me dar responsabilidades cada vez maiores.”
A jornalista Bruna Guedes, de 25, também desenvolveu um “sentimento de dono” em relação à loja do McDonald’s na qual aplica o que aprende no programa de trainee da companhia. Em oito meses, ela já assumiu várias funções: foi atendente, treinadora, coordenadora de balcão e agora, na reta final, é gerente-trainee. Em setembro, quando o programa termina, ela cobrirá as férias de um gerente – maior cargo do ponto de venda – e depois será efetivada em outra loja.
“A empresa nos dá desafios, mas isso nunca me amedrontou. Nunca achei que tinha responsabilidades demais, até mesmo porque aqui tudo é gradativo, com um passo após o outro, o que nos dá bastante segurança”, diz Bruna. Ela se formou numa faculdade particular de Rio Branco, no Acre, e mudou para São Paulo em 2011, para fazer uma pós. Quer migrar depois para a área de Comunicação do McDonald’s.
Longe da xerox. Os estagiários também não querem ficar de fora desse processo de fortalecimento dos jovens talentos e reivindicam das organizações uma atenção extra. No entanto, especialistas dizem que os universitários precisam ganhar mais experiência dentro das empresas antes de querer assumir maiores responsabilidades. “No passado o estagiário tirava xerox. Hoje ele tem indicadores de desempenho e uma série de atribuições nas mãos”, diz Manoela Costa, gerente da consultoria de recrutamento Page Talent. “Por mais exposição e responsabilidade que tenha, o universitário não pode ser cobrado por algo que não pode entregar.”
Aluna de Administração do Mackenzie, Marcella Fanti, de 20, passou oito meses em uma multinacional onde fazia “tarefas que ninguém queria fazer e sobravam para os estagiários”. Agora na Nestlé, trabalha com desenvolvimento de carreiras, recrutamento e seleção. “Faço análises de indicadores da área que inclusive vão para diretores e a vice-presidência”, diz. “Meus chefes deixam claro que querem me formar como analista e me efetivar no cargo.”
Segundo Marcella, o fato de ter mais responsabilidades não significa que seus chefes a cobrem por algo que ela não sabe. “Estágio é um aprendizado. Se eu errar, terei feedback”, diz. O contrato dela termina no fim do ano que vem.
Hoje Marcos Mattiello, de 29, tem cargo de chefia em uma fábrica de arames da Gerdau no Rio Grande do Sul, mas o vínculo com a empresa existe desde que ele passou para Engenharia Metalúrgica da UFRGS. Um convênio entre a Gerdau e a universidade concede bolsas de iniciação científica aos primeiros colocados no vestibular para o curso. No último ano da faculdade, Mattiello estagiou na companhia e, depois de formado, virou trainee.
"Como estagiário, participei de uma série de capacitações para conhecer o negócio da Gerdau e trabalhei com gestão da qualidade e no desenvolvimento de novos produtos. Tudo acompanhado por um coach", diz o engenheiro, que já fez um MBA em Gestão Empresarial na FGV e é mestrando em Ciências dos Materiais na UFRGS. "No trainee, também trabalhei com qualidade e depois fui para o processo produtivo. A responsabilidade aumentou e era preciso, cada vez mais, aliar a capacitação aos desafios e à avaliação de desempenho."
O desempenho de Mattiello lhe valeu uma vaga definitiva na companhia. Ele agora chefia 50 operadores de nível técnico - e passou a gostar de gestão de pessoas. "A faculdade de Engenharia às vezes não ensina sobre administração de equipes. Tive de aprender dentro da Gerdau", conta. "Se você acredita que pode vencer, a empresa te dá mais desafios e, ao mesmo tempo, suporte de coaching, recursos e metas atingíveis."
No Google, o programa de estágio começa com a distribuição de projetos entre os estudantes. Ao fim dos cinco meses de duração do programa, eles precisam apresentar os resultados. No ano passado, quando a primeira turma de estagiários concluiu as atividades, os trabalhos foram publicados em um site para serem analisados pelos responsáveis de cada área, a diretoria e o setor de RH.
Alegando a natureza estratégica dos projetos, a diretora de RH do Google para a América Latina, Mônica Santos, só revelou que um dos estagiários trabalhou em algo que envolvia a rede social Google Plus. “O Google cria possibilidades para as pessoas agregarem valor para a empresa”, diz Mônica. Segundo a executiva, a decisão de contratar só estagiários do último ano da faculdade, para um programa de curta duração, permite à empresa atrair jovens talentos de todo o País.
Pensando no lado do estudante, a dica da gestora de Carreiras do Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube) Carmen Alonso é a de que o universitário ingresse no mercado de trabalho o quanto antes. “Um ex-estagiário que participa de seleção para trainee ou é efetivado no cargo está muito à frente dos candidatos que não tiveram nenhuma experiência profissional”, diz. “Hoje não existe mais plano de carreira. Existem meritocracia, oportunidade e preparo. Quando a vaga surgir, é preciso estar apto.”